*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje, edição 284.
A partir de meados do século 20, o processo de urbanização brasileiro adquiriu consistência e se tornou hegemônico no contexto de ocupação demográfica do território nacional.
Em sua primeira motivação, ele expressa o desejo pela vida urbana, isto é, pela possibilidade de interação social que a cidade proporciona.“Por que desejas a cidade?”, perguntou arquiteto-antropólogo Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1943-1989) ao urbanizar uma favela, nos anos 1960. “Pelo movimento”, respondeu o emigrante nordestino, recém-chegado ao Rio de Janeiro. A resposta surpreendeu, pois se esperaria algo mais objetivo, como encontrar emprego, ou estudar, ou porque seus amigos também emigraram.
A troca de experiências, o encontro da diversidade, o ‘movimento’, essa é a base da vida urbana. As outras respostas são a racionalização daquela escolha. Contudo, as cidades têm experimentado uma mudança qualitativa que alcança o próprio cerne.
A urbanização acelerada, fruto da Revolução Industrial, imprimiu às cidades europeias um crescimento desestruturador. As teorias arquitetônicas então formuladas, buscando combater a desigualdade intolerável que se estabelecia, idealizaram propostas de produção industrializada da habitação e cidades perfeitamente programadas. Ao homem-tipo, a arquitetura respondeu com a cidade-tipo. Habitar, trabalhar, divertir, circular– cada função em seu lugar. Tudo previsto, tudo resolvido, todos felizes.
Nessa cidade da igualdade, o espaço parao encontro das diferenças não faria o menor sentido. Ao contrário, a expressão urbanística deveria contemplar os valores do homogêneo. Essa idealização do início do século 20 influiu poderosamente no sistema urbano brasileiro, desenvolvido após os anos 1950. Brasília é o exemplo mais que perfeito.
Mas, as respostas modernistas seriam consistentemente contestadas já nas décadas seguintes. Um livro essencial foi Morte e vida das grandes cidades, lançado em 1961 pela norte-americana Jane Jacobs (1916-2006), a que se seguiram estudos do austríaco Christopher Alexander, do norte-americano Robert Venturi, do italiano Aldo Rossi (1931-1997) e de tantos outros.
É justamente nesse período, de expansão do sistema urbano brasileiro, que nossas cidades reiteram os conceitos já sob contestação. O privilégio ao transporte sobre pneus (ônibus e automóveis) é um de seus esteios. Somam-se a ele, fortemente correlacionados, o estímulo ao aumento da área ocupada pela cidade e à baixa densidade. Nesse modelo, destacam-se os subúrbios monofuncionais, pobres de vida urbana, mesmo quando encapsulados nos condomínios de alta renda. O comércio de rua, animador do espaço público, é tragado pelos shopping centers.
Novas cidades ou expansões das existentes seguem esse padrão. É o caso de Palmas, capital do Tocantins, ou da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Trechos tradicionais das cidades são rendidos ao trânsito pesado, de ônibus displicentes e ruidosos, em um mar de automóveis. Avenidas outrora bonitas, bem dimensionadas, com escala agradável, transformam-se em meros corredores de tráfego. Como não reconhecer essa situação em nossas cidades?
Agora, quando entra em cena o tema da sustentabilidade, quando nos preocupa o mundo que iremos legar aos nossos filhos, não há como desconhecer que o mundo urbano vive momento crucial. As expansões exageradas não apenas são predatórias do ambiente natural, como, ao promover o isolamentoentre funções e entre estratos sociais, desqualificam a vida urbana. O espaço público perde vitalidade. Mal mantido, poluído, descaracterizado, enfraquece-se a identidade coletiva nele representada. Enfraquece-se a cidade como lugar da política.
Cidades mágicas são aquelas que nos encantam no trivial de sua vida urbana, lembradas pelo poder de suas ruas. É o “movimento”, diria o emigrante. É essa possibilidade da interação social, da troca entre os diferentes, da diversidade, que se coloca como a qualidade essencial das cidades, que precisamos defender.
Badintra Balankura – “City Movement” |