Em recente crônica, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos recorda pratos do cardápio carioca e sugere que se inclua o camarão com chuchu, o frango com quiabo, entre outros, no mesmo patamar como os espelhos da Colombo e o balanço das mulheres a caminho da praia, riquezas a preservar para que o Rio não perca sua identidade.
De fato, a cidade é constituída desses valores em mescla com seus espaços e na interação de seus habitantes, que constroem a memória coletiva e a identidade cidadã. O professor italiano Bernardo Secchi é específico: na cidade, a referência coletiva se alicerça no monumentum de grande significado social e alta qualidade arquitetônica.
No Rio há uma peculiaridade: os elementos geográficos. Pão de Açúcar, Corcovado, Dois Irmãos, Gávea, Penha, o Maciço da Tijuca e a Baía de Guanabara, pontuam a paisagem – e, em certo modo, se associam à função de monumentum citada por Secchi.
Então, poderíamos dizer que a geografia faz a referência coletiva independentemente dos elementos arquitetônicos e urbanísticos?
Ao contrário do que pareceria, é mais complexo: há necessidade de um equilíbrio qualitativo entre os elementos construídos pelo homem e os elementos naturais para que a sinergia se estabeleça.
Nesse sentido, a arquitetura média produzida pelo Rio no século passado ajudou nessa composição. Ela não é uma arquitetura que busque sobrepor-se à paisagem. Aqui não cabem os edifícios estrelados de Dubai ou de Kuala Lumpur ou a torre “The Shard” (com 306m de altura), de
Londres. No Rio, a regra edilícia fundada nos estudos de Alfred Agache, em 1928, determinou um continuum construído de edificações justapostas e de mesma altura, como ocorre no Castelo e nas orlas da Glória, Flamengo, Copacabana e Ipanema (até 1970), que resultou em um ambiente edificado em harmonia com os elementos geográficos monumentais. As construções servem de pano de fundo para os ícones da natureza.
Mas, se nas edificações a cidade soube conter-se, foi nos espaços públicos que o Rio produziu a exuberância urbanística e imagética apropriada à exuberância geográfica.
A simbiose monumental no Rio se inaugura com a Avenida Beira-Mar, em 1904. Ela incorporou a praia à cidade e o fez como espaço público, formatando a primeira resposta de mesmo nível qualitativo entre o construído e o geográfico – pela escala, pelo excelente desenho e pela inédita garantia de uso pleno.
A partir daí, o Rio superou-se em qualidade do espaço público à escala da cidade: a orla de Copacabana e sua calçada excepcional (a original), a de Botafogo, o Aterro do Flamengo, com o Parque e os dois ícones arquitetônicos – o MAM e sua passarela (de autoria de Afonso Reidy) e o Monumento aos Pracinhas (Konder e Marinho) – e a expansão de Copacabana, dos anos 1970, com os mosaicos de Burle Marx, tudo isto é de uma riqueza espacial, paisagística e urbanística de incomensurável valor.
Entretanto, por que outros lugares importantes não tiveram igual qualidade, como a beira-mar do Centro, a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas e a Esplanada de Santo Antonio? Por que elementos urbanísticos significativos sofreram intervenções medíocres, como ocorreu na Av. Presidente Vargas com as passarelas?
Em tempos de renovação, é a própria cidade que nos oferece os caminhos. Frango com quiabo, Burle Marx e Floresta da Tijuca. No Rio, quando se quer, a cultura se ombreia à natureza.
Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 29/03/2014