“O ar da cidade liberta”, nos diz conhecido ditado medieval. Associo essa expressão a uma pintura do século 16, do flamengo Pieter Bruegel (1525-1569). Chama-se Luta entre o Carnaval e a Quaresma e representa uma praça onde múltiplas pessoas e grupos desempenhamvariadas e conflituosas atividades urbanas.
“A cidade é a prisão do indivíduo moderno”, diz o pintor Elías, personagem nova-iorquino de Hereges, recente romance do escritor cubano Leonardo Padura. Ele explicita sua avaliação
pintando paisagens urbanas sem gente, o que entende como representação da solidão no mundo contemporâneo.
Entre esses dois tempos, terá a cidade perdido sua condição essencial de lugar da liberdade e se tornado o lugar da opressão? A pintura de Elías pode sugerir outras interpretações. Para além da cidade como prisão do indivíduo, descreve-se uma cidade que aprisionou a sua própria vida – aquela que se estabelece no espaço público, o lugar da interação social, da liberdade. Uma paisagem urbana vazia de gente é um cenário. Não é um espaço, porquanto o que justamente qualifica o cenário como espaço é o uso, são as pessoas, são os ritos que se estabelecem e que constroem a memória individual e coletiva do lugar.
Em que pese o termo ‘cidade’ abranger tanto o burgo medieval de Bruegel quanto a Nova York contemporânea de Elías, há uma gigantesca diferença de tempo e de escala que os distingue. Na pequena cidade, todos se conhecem e os papéis estão preestabelecidos; mesmo assim, na praça se permite o jogo libertário da mudança de papéis, ainda que com o uso de máscara ou fantasia. Já nas ruas da grande cidade, o domínio é da multidão, onde a identidade de cada um pode esmaecer – o que transmitiria ao personagem do romancista cubano a sensação de solidão, de prisão.
O filósofo francês Jean-Paul Sartre 1905-1980), por exemplo, em sua primeira visita a Nova York, em 1945, se sentia perdido ante a imensidão de ruas retas, acostumado que estava ao emaranhado de pequenas distâncias nas vielas de Paris.
Estar inidentificável no pequeno burgo ou estar solitário na multidão da metrópole é falso contraponto: é um mesmo desejo que, em longa caminhada no tempo, busca a liberdade.
É falso contraponto também porque talvez não haja possibilidade de a liberdade ser só do indivíduo senão na loucura. A liberdade, para ser plena, precisa ser compartilhada. E quem sabe aí resida a mágica maior da cidade: o oferecimento de condições que podem permitir tal compartilhamento no coletivo. Hoje em dia, embora o espaço urbano não seja o único lugar da interação, pois os modernos meios de comunicação digital também a potencializam, a cidade continua exercendo o papel de matriz civilizatória.
Contudo, no caso brasileiro, nosso sistema de cidades se encontra sem reconhecimento quanto à complexidade e importância dessa responsabilidade. A homogênea falta de atenção a todas as escalas urbanas desmerece tanto a pequena cidade quanto a metrópole. Seus mecanismos de desenvolvimento, como a autonomia política e o planejamento do futuro, concebidos nos solavancos da história, são embaçados por um ‘pragmatismo de resultados imediatos’ e por um modo de governar que abstrai as competências – tal como, aliás, ocorre em outras áreas de poder. São métodos políticos ultrapassados em relação à consciência coletiva.
Quem sabe devamos começar a revisão desses métodos pelas cidades – lugar, aliás, onde tudo começou, onde a política nasceu?
A razão de ser da cidade é a liberdade; mas ela também pode oprimir. São os testemunhos de Bruegel e de Elías. Sendo uma construção social, a cidade se ajusta aos desejos do tempo. A escolha é nossa.