Está na pauta política o financiamento para concessionárias de serviços de saneamento. É uma boa atitude em face da situação calamitosa em que se encontram as cidades brasileiras. Contudo, é preciso ponderar.
Uma grande cidade é um fenômeno urbano, social, econômico, político e cultural de extrema complexidade. Seus problemas são imbricados entre si e o enfrentamento deles exige políticas associadas.
O emprego de programas setoriais autônomos não alcança a eficácia que muitas vezes se imagina.
Estudar os problemas do espaço habitado e articular as respostas possíveis é próprio do planejamento urbano e territorial, por meio de quadros técnicos qualificados. Infelizmente, o
Brasil dispensou o planejamento em todos os níveis de governo já há bastante tempo. Hoje, formulam-se políticas e programas setoriais com grande desenvoltura e absolutamente
isolados.
Veja-se o saneamento. Comumente, é tratado apenas pelos componentes de água e de esgoto. Mas não podem estar dissociados das ações relativas à coleta e ao destino dos resíduos
sólidos, nem das águas pluviais, que, por sua vez, são absolutamente relacionadas com a urbanização, com a ocupação do território, com as políticas habitacionais e de mobilidade.
A questão se agrava quando se sabe que o país construirá, nesta geração, um número de domicílios equivalente à metade do que tem hoje. Ou seja, até 2040, teremos mais 30 milhões
de novos domicílios. (Isso sabendo-se que não haverá crescimento populacional e sem considerar a construção para reposição: apenas para suprir o fenômeno da diminuição do tamanho médio das famílias.)
Onde serão construídas essas novas moradias? Como o tratamento dos esgotos sanitários será efetivo, no horizonte de 25 anos, se estiver alheio à localização e ao modo em que se construirá mais uma metade da cidade hoje existente?
Se seguirmos o modelo atual, a cidade continuará se espraiando, sem infraestrutura, degradando o ambiente e cada vez mais em mais baixa densidade. E, como a população não cresce, isso se fará com o deslocamento de moradores de bairros hoje consolidados, que perderão vitalidade e tornarão ociosas as infraestruturas instaladas.
Não se trata de uma questão acadêmica: cidade compacta versus cidade expandida. Ela tem implicações cruciais para o futuro, para a qualidade do espaço e para alcançar mínimas condições de universalização dos serviços públicos, inclusive o de segurança.
É um novo ciclo urbanístico sem precedentes. O enfrentamento dessa questão é crucial para o futuro das cidades brasileiras e para sua democratização.
A oportunidade de se abrirem linhas de financiamento para programas setoriais sugere que também se contemple o estímulo à organização de sistemas de planejamento urbano e territorial, de modo a dar consistência a futuros investimentos.
A ineficiência de empresas de saneamento, como é o caso do Rio de Janeiro, certamente está associada ao modo autônomo como elas atuam. Há três décadas a pequena estrutura fluminense de planejamento metropolitano foi desconstruída. Ainda que abatida muito jovem, com apenas 10 anos de vida, a extinta Fundrem – Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana – é até hoje a mais efetiva referência técnica para o estudo e a regulação dos serviços metropolitanos.
Precisamos retomar o ritmo. Mas a harmonia se dá com os instrumentos seguindo a mesma pauta.
Ciência Hoje, Outubro de 2016