Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 25/05/2014
Passando por um mergulhão recém inaugurado, comentou comigo o taxista em Brasília: “não entendo o pessoal que reclama de gastos com obras da Copa; fosse na Alemanha, que tem tudo, tá bem; mas aqui, que não tem nada?”
De fato, se considerarmos o todo de cada cidade, essa avaliação tem o seu valor.
Brasília, por exemplo. O Plano Piloto, a região do Distrito Federal sob desenho de Lucio Costa, tem qualidade ímpar, com suas superquadras, paisagismo magnífico, edifícios públicos de reconhecimento mundial, enfim, é uma “civitas” e uma “urbes”, como queria o seu autor. Mas no PP moram menos de trezentos mil habitantes enquanto que na Grande Brasília já são mais de três milhões. Nas áreas satélites ao Plano, a realidade é outra: há falta de infraestrutura, de transporte, de arborização e de serviços públicos.
É uma realidade comum às cidades brasileiras, nas quais a maior porção é composta por uma ocupação difusa com urbanização precária e grande escassez de serviços públicos. Tem razão o taxista: falta muita coisa na cidade. A obra pública é indispensável.
Os governos focam na obra o seu objeto de desejo. Querem obra (não necessariamente obra pronta…). E, paradoxalmente, não se preocupam em planeja-las.
No país, os incipientes sistemas públicos de planejamento foram desmobilizados, seus quadros funcionais são mínimos. Os governos passaram a se apoiar em equipes comissionadas, que não lhes dão o suporte da pesquisa e da reflexão.
Querendo abstrair a carência de planejamento e de projetos, sem os elaborar, o governo federal editou um regime especial de licitação de obras públicas, o RDC, com o qual as empreiteiras são contratadas mesmo sem projeto, o que vale para as obras da Copa e do PAC. Reduz-se o prazo para contratação do construtor, não necessariamente o das obras; sem projeto, as obras têm preço e qualidade à conveniência do interesse comercial da empreiteira. Não é um bom legado, como nos diz o sentimento das ruas. Felizmente, a generalização desse regime para todas as obras públicas, em todos os níveis de governo, que chegou a ser proposta no Congresso, foi rejeitada pelo Senado esta semana.
O planejamento da ordenação do território e das obras públicas correspondentes é função de Estado e pede continuidade. Agindo sem planejamento, na emoção da premência, os governos aumentam as chances de erro – no custo, na qualidade e nos prazos. Erram também na avaliação das prioridades, o que é apontado por muitos brasileiros que se manifestam em relação às obras da Copa.
Lá na Alemanha, que tem tudo, por certo cada obra pública é planejada, discutida com os cidadãos, avaliadas possibilidades e custos. O governo contrata projetos completos e depois é que contrata a construção.
Aqui, onde falta tanto, mais necessário seria um Estado preparado para definir investimentos de alto rendimento social. A desigualdade intra-urbana, que se resume na expressão do taxista, “aqui, que não tem nada”, é um dos mais prementes desafios da cidade contemporânea. A construção da consciência coletiva por cidades menos desiguais, esse sim, talvez possa ser um dos melhores legados da Copa.
Uma das lições do futebol é que o improviso às vezes dá certo no campo. Nas obras, fica mais caro. Na Copa, são outros quinhentos. Mas, por enquanto, vamos torcer!