Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 316 – julho/2014
Escrevo às vésperas da Copa do Mundo, na expectativa de vitória brasileira e da realização de um grande evento em todo o país. Também escrevo às voltas com greves, ruas tomadas indistintamente por manifestações de portes variados, cidades à beira de um ataque de nervos. Como estaremos quando esta revista estiver nas bancas?
O processo de urbanização vivido pelo país desde meados do século passado resultou na quadruplicação da população urbana e na promoção de vinte metrópoles, com duas megacidades. As melhoras nos índices sociais, de saúde, mortalidade infantil, longevidade, alfabetização, educação, entre outros, tiveram na cidade o seu suporte essencial e, em processo biunívoco, deram força ao crescimento urbano.
O processo político também foi vertiginoso. Superada a ditadura, o país implantou uma democracia consistente, venceu a instabilidade financeira-inflacionária, promoveu a melhora econômica de milhões de brasileiros e reduziu a miséria. Estamos nos encaminhando para a sétima eleição geral desde a Constituição de 1988.
Contudo, há uma sensação geral de desconforto que faz com que inclusive as grandes conquistas estejam sob dúvida. Parece haver um consenso: a vida urbana tem se deteriorado muito nos últimos tempos.
Dificuldades na mobilidade, aumento da violência, ausência de serviços públicos ou ineficiência na sua prestação, entre outros, são temas do quotidiano da imensa maioria dos brasileiros, em especial nas grandes cidades. E este panorama não se coaduna com a ideia de que o Brasil é um novo fenômeno mundial, a sétima economia do mundo, um país rico.
Onde está situado o descompasso?
A Copa do Mundo, assim como os Jogos Olímpicos, certamente não são uma panaceia para a superação dos nossos problemas. Porém atuam como potencializadores de esforços e de recursos que estariam dispersos ou sequer seriam disponíveis. Mas, justamente por se configurarem como um momento preciso, uma data específica, é que conseguem a mobilização capaz de acelerar processos ou propor novos desafios.
Artigo assinado pelo presidente do Tribunal de Contas da União, publicado em O Globo em 12 de junho, afirma que apenas 43% das obras de mobilidade urbana projetadas como legado da Copa ficaram prontas. Diz o TCU que “o Brasil precisa planejar melhor” e que a instituição “está engajada em um projeto de Estado para pensar o país a longo prazo”.
Assim, quando não se alcançam as metas elencadas e as promessas não se materializam, põem-se à luz muitas das dificuldades estruturais ao desenvolvimento. E, entre estas, encontra-se o descompasso entre as exigências do sistema urbano brasileiro e a capacidade do Estado enfrentar os desafios urbanos contemporâneos.
O Estado brasileiro cresceu muito nas últimas décadas. Mas ainda não atentou para a necessidade de estruturar, nos três níveis de governo, um sistema de Planejamento que seja compatível com os avanços políticos alcançados com a democratização. Nós fomos capazes de construir um importante, complexo, diverso e rico sistema de cidades. Mas nesse processo também se promoveu um enorme passivo sócio-ambiental, crescente desigualdade intra-urbana e escassez na prestação dos serviços públicos urbanos.
As coisas ficaram mais complexas e a discricionariedade de bons e honestos governantes não é mais suficiente. Os problemas urbanos não se resolverão por mágica, por promessa ou apenas por “vontade política”. Nossas cidades precisam de políticas públicas consistentes, implantadas com continuidade, de amplo conhecimento, que garantam a todo cidadão o pleno exercício do Direito à Cidade.
Vencido o mês do futebol, espero que o Brasil tenha sido vitorioso. Se possível, também nas quatro linhas. Mas, de qualquer modo, sairá desta Copa do Mundo um país mais atento às dificuldades de suas cidades.